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Envenenar o poço: atacando a imparcialidade do debatedor

- 3 min leitura

Imagine o diálogo abaixo sobre meios de transporte

Milene – Penso que o melhor meio de transporte é a bicicleta, pois além de não poluir o meio ambiente ainda nos torna mais saudáveis.

Bárbara – Isso não é verdade. Nada como a comodidade de um carro. Além disso, com ele temos liberdade de fazer muitas coisas.

Milene – Você é dona de um posto de gasolina, é claro que irá defender que os carros são melhores.

No diálogo acima, Milene usa como razão para desconsiderar os argumentos de Bárbara o fato de esta ser dona de um posto de gasolina. Se Bárbara vende combustível, é do interesse dela que muitas pessoas andem de carro e portanto ela não tem credibilidade para ter uma opinião justa sobre o assunto.

Esse tipo de argumento ad hominem ataca a imparcialidade do argumentador, acusando-o de tendencioso, em virtude de alguma circunstância pessoal. Essa circunstância pode ser o cargo ocupado, a profissão, a crença religiosa ou outras características pessoais. 

Essa falácia é chamada de “envenenar o poço”. Quando uma fonte de água é envenenada, todos que dependem daquela água ficam com um pé atrás, pois a fonte, que deveria ser confiável, se torna perigosa. No contexto argumentativo, envenenar o poço significa atacar a credibilidade do debatedor, “contaminando” a percepção das pessoas sobre o que ele vai dizer, fazendo com que tudo que venha dele se torne suspeito.

No caso do diálogo entre Milene e Bárbara, Milene “envenena o poço” ao insinuar que, por ser dona de um posto de gasolina, Bárbara não tem condições de apresentar uma opinião justa. Então,  passamos a desconfiar se Bárbara realmente pensa que suas ideias são verdadeiras ou está afirmando isso só porque não pode defender algo diferente.

Embora acusações como essa sejam frequentes e muito efetivas em um debate, elas são uma falácia. É verdade que Bárbara tem um incentivo para pensar que o carro é melhor que a bicicleta. Porém, isso também não impede que tenha bons argumentos. Para não incorrer na falácia de envenenar o poço é necessário analisar esses argumentos ao invés de simplesmente descartá-los com base em uma circunstância pessoal. Quando a discussão é encerrada simplesmente porque há supostamente um conflito de interesses, sem que os argumentos sejam analisados, cometemos uma falácia e encerramos prematuramente o debate.

Os problemas desse tipo de argumento ficam mais nítidos em outra situação. Imagine o diálogo abaixo.

Júlia – Eu acredito que deveriam ser criados impostos sobre grandes fortunas. As pessoas que têm mais recursos deveriam contribuir mais para o bem-estar da sociedade, especialmente para ajudar a reduzir a desigualdade.

Renato – Claro que você pensa assim, Júlia. Você é pobre e quer que os ricos paguem pelos serviços que você não consegue pagar. Sua opinião é tendenciosa, porque você quer tirar vantagem disso.

Júlia – E você só defende que não haja impostos sobre fortunas porque é rico e quer manter todo o seu dinheiro. Não dá para confiar em uma opinião como a sua, já que tudo o que você quer é se beneficiar dessa situação.

Nesse diálogo, tanto Júlia quanto Renato utilizam a falácia de “envenenar o poço”. Renato desqualifica o argumento de Júlia ao insinuar que ela só defende os impostos sobre fortunas porque é pobre e quer se beneficiar disso, sem realmente debater a ideia de justiça social e redistribuição de renda. Do mesmo modo, Júlia desconsidera o argumento de Renato sobre ser contra os impostos, sugerindo que ele só defende essa posição porque quer manter seu privilégio de rico, sem analisar se existem razões econômicas válidas para ser contra o imposto.

O efeito desse tipo de discussão é o fim do diálogo racional e produtivo. No final, essa falácia prejudica a qualidade do debate e intensifica a polarização, uma vez que os interlocutores passam a se ver não como pessoas discutindo ideias, mas como inimigos em campos opostos, cujas opiniões são invalidadas automaticamente por suas circunstâncias pessoais. O resultado é que nenhum dos dois realmente ouve o outro, e o diálogo se torna impossível.

Referência

WALTON, D. Lógica Informal: manual de argumentação crítica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.